quinta-feira, 31 de março de 2011

VOLUNTARIADO

Ser voluntário é doar seu tempo, trabalho e talento para causas de interesse social e comunitário e com isso melhorar a qualidade de vida da comunidade.

O movimento do voluntariado, tradicionalmente falando, aparece com propósito assistencialista. Contudo, vários movimentos de voluntariado têm tomado posições mais maduras, nos quais o grupo beneficiado é reconhecido em seus direitos, com trabalhos não só focados na compaixão, mas no genuíno interesse em promover a autonomia do sujeito beneficiário, a recuperação do que lhes é de direito.

Atualmente, observa-se que para colocar em ação nossa capacidade de continência, de cuidar do outro, é preciso estar aberto ao desconhecido, ao risco do encontro com esse desconhecido, sempre ameaçador, porque nos remete à parte estrangeira de nós mesmos, com seus afetos mais intensos e muitas vezes incômodos.

Sinaliza que uma ação benemerente, envolvendo relacionamento humano, é intensamente mobilizadora para todos os envolvidos e, consequentemente, faz jus a uma atenção cuidadosa, sob o risco de extravios da direção benevolente e, nesse caso, acabar por não fazer o bem, como se propõe.

Os voluntários mostram desejo de ajudar alguém que precisa de apoio. Porém, ao longo do processo, é muito comum o abandono precoce da ação. A baixa fidelização dos participantes torna-se um dos maiores problemas referidos pelos gestores de ações voluntárias.
Rhodes (2002, p.57), afirma que a sobrevivência do relacionamento depende largamente das recompensas no início do trabalho, quando tais recompensas são baixas: "[...] eles acabam se dando conta de que o investimento pessoal necessário para trabalhar com adolescentes, por exemplo [de condições desfavorecidas] ultrapassa as suas previsões, particularmente se o envolvimento está o distanciando dos compromissos familiares e do trabalho"
Pensar o psiquismo, como se constitui e o que está em jogo nessa relação com outros seres humanos, é importante para entender as motivações que a pessoa é levada a querer cuidar de outra, geralmente em situações de vulnerabilidade, e em ambientes tão distantes dela.

Freud nos diz que um dos maiores problemas com os quais temos que lidar é nossa relação com outros seres humanos. Assim, é interessante refletir essa motivação para cuidar de quem tem tantos problemas. Podemos imaginar o quanto se torna complexa essa relação. Torna-se instigante pensar nas motivações inconscientes que levam a isso.
Muitas vezes, as pessoas são movidas para o voluntariado por um desejo de reparar experiências malogradas de sua própria vida, de preencher faltas, de projetar no outro também todo o sofrimento e assim se sentir, purificado desse mal.
Não é incomum a atitude diante de uma população beneficiária, pessoas que dizem: "Quando estou aqui nesse abrigo, vejo tanto sofrimento que volto para casa achando minha vida uma maravilha!". Parece que quem está "fazendo o bem" para esse sujeito é a tal criança do abrigo, que lhe "faz o favor" de assumir "toda" a desgraça do mundo em sua vida e, assim, aliviar o sofrimento do voluntário.

O voluntário tem a expectativa de ser investido afetivamente por parte daquele a quem oferece a sua ajuda, ser amado e reconhecido por sua dedicação, e, quando não ocorre ou demora a ser demonstrado, a tendência é aparacem sentimentos hostis em relação àquela pessoa, num movimento psíquico defensivo.

Birman (2007, p.24 e 25), afirma que: "A autoexaltação desmesurada da individualidade no mundo do espetacular fosforescente implica a crescente volatilização da solidariedade. Enquanto valor, esta se encontra assustadoramente em baixa". A solidariedade seria própria das relações inter-humanas fundamentadas na alteridade, o que implica em que o sujeito reconheça o outro na diferença e singularidade, ou seja, alguém com história própria, desejos, modo de ser e não apenas alguém em quem se projete a si mesmo, seu modo de existir, seus ideais.

A janela para decodificar esse abandono precoce da ação está no funcionamento inconsciente, seus conflitos e ambiguidades. Escutar esses voluntários, levantando questões e fazendo apontamentos, pode levar a caminhos com possíveis efeitos terapêuticos, porque pode facilitar a circulação das palavras e promover redes de significação que levem a ampliar a percepção de si mesmo.

Assim, como desfechos possíveis o voluntário pode encontrar um novo jeito de participar da vida do sujeito que recebe seus cuidados, criando um estilo de ajuda em que o outro seja verdadeiramente respeitado ou podendo reconhecer seus limites, pelo menos no momento, para aquela ação ou, honestamente, admitir que não quer relacionar-se com aquela pessoa.

O importante é que sejam reflexos de uma percepção mais ampliada do seu mundo interno e de um encontro mais verdadeiro com o seu desejo.

Outro voluntariado é o que se envolvem com a ação estão, preocupados com seus próprios problemas psíquicos, mal ou insuficientemente resolvidos. O encontro com o outro que revela possuir algum tipo de fragilidade mobilizando intensamente.

Enriquez (1991, p.89), propõe não podendo tratar os seus próprios conflitos, o risco que corre e que faz com que o beneficiário da ação também corra é de se apresentar como referência absoluta, inquestionável, que não suporta senão a reprodução de sua própria imagem (de sua opinião etc.) ou ainda de provocar um conflito afetivo na pessoa atendida, neutralizando suas potencialidades, seus interesses e desejos.


Aquele que recebe os cuidados, por sua vez, pode se deixar seduzir por essa figura que se mostra tão potente, talvez numa ilusão de salvamento, aceitando o lugar de objeto do desejo do outro (o voluntário).
 
Mas, todo humano nasce em condição de pré-maturidade: como não sobrevive sozinho, está em desamparo. Tal experiência deixa marcas no inconsciente de todos. A cada situação de desamparo que é vivida ao longo da vida, há uma espécie de reconexão com essa experiência primordial.

As pessoas que se põe a cuidar de outras em programas de voluntariado precisam de um mínimo de formação - o que envolve não só treinamentos, informação, mas espaços de reflexão, onde poderia se produzir um pouco de autoconhecimento e reflexão sobre a prática e assim ser possível a construção de programas de voluntariado mais efetivos.


Como diz a psicanalista Iisabel Khan em sua apresentação sobre o meu livro Voluntariado: uma dimensão ética: "Fazer um trabalho social, ajudar o próximo, só é possível se forem garantidas condições de reflexão, a supervisão [como conhecemos em Psicanálise], para que haja suporte a alteridade, aos estranhamentos, à potência criada em cada encontro. Só assim o outro - beneficiado - não estará a serviço do narcisismo do benfeitor, cativo de sua demanda de amor, de sua proteção, da 'boa vontade'. Um encontro que não se sustenta apenas na compaixão e que permite ao sujeito assistido se afirmar em seu lugar social, a partir de suas competências, resgatando aquilo que lhe é de direito."

Vale especial atenção aos trabalhos dos voluntários que se propõe a uma ação cuidadora diretamente com outro ser humano, isto porque as motivações inconscientes podem tanto indicar um genuíno interesse em contribuir com o outro (e nesse caso é preciso deslocar-se do autocentramento), como podem apontar para o uso do outro para atender às suas próprias questões psíquicas mal ou insuficientemente resolvidas (uma forte carência, uma imperiosa necessidade de reconhecimento social, um estranho afã de salvar o mundo a qualquer custo, certezas absolutas sobre o melhor modo de vida para o outro, etc.). Aqui, fica claro que a ação voluntária, tão benevolente teoricamente , não teria praticamente nada de útil para quem a recebe.

O grande desafio para o voluntário em sua função cuidadora é abrir mão de uma suposta onipotência, como amarras narcísicas, além de suportar fazer face ao desamparo que irá confrontá-lo na realidade daquela relação, o que remeterá irremediavelmente ao seu desamparo primordial, doloroso de ser reeditado. Um esforço psíquico nada simples, considerando que, os voluntários que não possuem eles próprios uma experiência de análise pessoal, estamos falando de vivências que se encontram no fio da navalha.


BIBLIOGRAFIA:


BIRMAN, J. Mal-estar na Atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ENRIQUEZ, E. O Trabalho da Morte nas Instituições. In: KAES, R. (org.). A Instituição e as Instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.

FERRARI, R.S. Voluntariado: uma dimensão ética. São Paulo: Editora Escuta, 2010.

RHODES, J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today's youth. Cambridge: Harvard University Press, 2002.






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