sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

ZAZIE NO METRÔ

Cultuado pela crítica e pelo público, Zazie no metrô é um romance muito engraçado que, beirando o pesadelo, traduz a loucura do mundo, Zazie, através de tipos muito parisienses. Vinda do interior, Zazie chega à capital para passar alguns dias, sob os cuidados do tio Gabriel, com duas obsessões na cabeça: andar de metrô e usar uma calça jeans pela primeira vez. Mas uma greve dos transportes coletivos impede a menina de fazer seu passeio subterrâneo e, para ganhar a sonhada calça jeans, ela se vê às voltas com um sujeito que não sabemos se é um tarado ou um policial. A menina passeia pela Paris dos anos 1950, uma cidade diferente da capital da alta cultura que conhecemos, na companhia de amigos de seu tio: um taxista, um sapateiro, um dono de bar, uma garçonete e um papagaio, que passam o dia enchendo a cara e jogando conversa fora.




 A ousadia linguística de Queneau, com seus diálogos disparatados, é um dos traços marcantes do livro, que aparece entre os cem principais romances do século XX na enquete promovida pela Folha de S. Paulo com críticos brasileiros. O volume conta ainda com posfácio do pensador francês Roland Barthes, inédito no Brasil. O projeto gráfico dialoga com a ousadia do romance: impresso em papel-bíblia, traz o clima da época com fragmentos de cartazes reproduzidos na parte interna das páginas. Zazie no metrô é o 4ª título da Coleção Particular, que já publicou A fera na selva, de Henry James, Bartleby, o escrivão - Uma história de Wall Street, de Herman Melville, e Primeiro amor, de Samuel Beckett.
A transposição do romance de Queneau para o cinema parecia impossível, mas, no entanto, Malle alcança êxito total, encontrando o equivalente visual para a explosão das palavras. Ele realiza, desta forma, "um tipo de balé
burlesco, de comédia completamente louca, absurda, que busca, de certo modo, reencontrar a tradição da comédia no cinema mudo americano da belle-époque, insistindo muito numa realidade que se degrada", segundo o próprio Malle.


COMENTÁRIO DO FILME ZAZIE NO METRÔ

Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

O filme
Zazie no metrô é muito bem vindo para lançar nossas Jornadas sobre semblantes e

sintomas na vida e na análise. Semblante é uma noção difícil de apreender. Ela articula o

simbólico com o imaginário em relação ao real. Pensá-lo como uma sanfona que abre e fecha

ajuda a lidar com sua diversidade. É como se em sua abertura ele se distanciasse do real e

em seu fechamento se aproximasse dele.

Zazie com todo seu charme de menina levada é usada por Queneau para fazer vacilar, com

humor e ironia, os semblantes de sua época, assim como a literatura. O interessante para

nossa discussão sobre o tema das Jornadas é que Queneau não faz Zazie produzir uma

destruição dos semblantes, ela desconstrói, desmonta com suas histórias e suas perguntas

os semblantes que lhe são oferecidos para que não esqueçamos aquilo com o que eles lidam

e possa se introduzir o que realmente lhe interessa: o metrô, que ela não consegue ter

acesso por causa da greve. Com sua antipatia feminina em relação aos semblantes, ela

esvazia seu lado pomposo, sem, no entanto, abrir mão dos semblantes para revelar o Eros, o

pulsional, que os alimenta.

J.-A. Miller em seu texto “Mulheres e semblantes” (1) lembra o movimento da civilização de

substituir, sublimar, que ele chamou de Eros inicial, o que faz as mulheres parecerem ser

contra a civilização. Zazie nos ajuda a perceber que não se trata de uma luta contra a

civilização, mas uma tentativa permanente para fazer a civilização acolher o Eros que ela não

pode negativar, nem substituir integralmente pela
filia que sustenta o lado homossexual dos

laços humanos.

Com o papagaio Laverdure que diz: “falar, falar, você só sabe fazer isso”, Queneau denuncia

o Eros que insiste na fala. Ele aponta também o gozo que não consegue ser dito ou que só

pode se dizer atravessado, presente em várias cenas do filme de forma bem-humorada,

como a do telefone sem fio que esconde e revela o que não pode ser dito: a menina visada

como objeto da libido masculina.

O filme conduz o espectador a esse jogo que estou chamando de abertura e fechamento do

semblante. Louis Malle, que adaptou o romance para o cinema, consegue colocar, desde as

primeiras cenas, esse movimento de abertura e fechamento. Tio Gabriel mostra Paris à Zazie

através de seus monumentos que homenageiam seus grandes homens, como o famoso

Napoleão, e Zasie lhe diz: “Napoleão, o caralho!”

Nesse passeio inicial por Paris, Zazie aparece e desaparece através das janelas do carro e

está o tempo todo escapando ao tio que durante todo o filme não consegue domá-la. No

saldo de sua passagem por Paris, ela diz no final: “envelheci”. Ela não viu o metrô, objetivo

principal de sua ida à Paris, por causa da greve, mas perdeu a ingenuidade nessa busca que

poderia se infinitizar pela própria impossibilidade de alcançar seu objetivo. A última cena do

filme mostra os trilhos que se perdem no infinito, não os trilhos do metrô, que ela não

conseguiu ver, mas aqueles que a levariam de volta para casa, porém não mais para o

mesmo lugar, graças ao efeito de desconstrução e de reconstrução dos semblantes que lhe

permite recuperá-los pela via da ironia. Ela não volta mais ao caipirismo ou ao natural da

interiorana, mas a um novo lugar que está por vir, em permanente construção no desenrolar

desses trilhos.

Queneau nos mostra isso em sua maneira de escrever, ele subverte a escrita das palavras,

provocando uma satisfação especial no leitor que precisa se entregar a seu movimento, a

sonoridade criativa das palavras e frases.

O filme nos mostra de um lado o semblante que os grandes monumentos representam, de

outro, o “caralho” da exclamação de Zazie que conduz nosso olhar para o que está sub-posto

e de onde deriva o interesse pela edificação desses semblantes.

Louis Malle passeia sua câmera pelos grandes monumentos e
en passant mostra os

escombros de Paris: marcas da destruição da guerra, mas também canteiro de obras de sua

reconstrução. Com perspicácia, ele provoca um enorme atordoamento, como se não

pudéssemos entender mais nada do masculino nem do feminino pela enorme confusão entre

os personagens. A confusão dessa trama serve para resgatar com humor e em tom irônico a

função e o valor dos semblantes.

O semblante abre e fecha em direção àquilo que alavanca sua construção, mas que é, no

entanto, de outra dimensão, fora da ordem e que por isso mesmo ameaça em permanência

suas construções.

Roland Barthes em seu pósfácio ao livro
Zazie no metrô (2) salienta a forma particular como

Queneau luta contra a literatura mantendo “de pé o nobre edifício da forma escrita, mas

carcomido, marcado por mil escamações”. Ele diz: “nessa destruição contida, algo de novo,

de ambíguo, é elaborado, uma espécie de suspensão de valores da forma: como a beleza

das ruínas”. Destruição onde algo de novo pode surgir, um semblante menos defendido

contra o pulsional e que lhe dá outra dignidade.

Nossa pergunta é então: como lidar com o vai e vem dos semblantes com o qual convivemos

inevitavelmente em nossa vida em sociedade como cidadãos na construção permanente da

civilização?

Podemos pensar que seria o sintoma que teria essa função, na medida em que ele obriga a

língua a abrir seus horizontes e incluir o infinito particular de cada um, de cada uma
um infinito que se singulariza, consentindo com a impossível universalização da forma de gozo.

Movimento que vai do sintoma ao sinthoma, ou seja, do que se sustenta pelo recalque ao

que sem desprezar sua função, que admite novas formas de lidar com a positividade do

gozo, que não se pode negativizar e que necessita de novos recursos, de uma nova criação

para ser incluído na civilização. Caminho que leva a uma subjetividade criadora (3), bem

diferente de uma oposição à civilização ou de um empuxo ao cinismo contemporâneo.



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